1984- O Ano da Sola do Sapato
Hoje tive uma ideia (esboço) enquanto esperava pelo autocarro... (já não habito na carruagem do metropolitano de Lisboa):
Uma sociedade em que era socialmente inaceitável, vergonhoso e insultuoso mostrar a sola dos sapatos.
Imaginei uma sociedade que cuidava especialmente bem dos pavimentos das ruas das cidades. Ruas impecáveis por todo o lado. Tratadas com carinho como se fossem jardins. Estradas de alcatrão lisinho como veludo a perder de vista. Não existiriam zonas de terra ou coisa que o valha. Pois em dias de chuva, a própria pegada visível da sola do sapato seria um crime. Seria imediatamente denunciado por um qualquer cidadão preocupado e prontamente investigado e punido pela "Bófia da Sola", sempre à espreita de pegadas criminosas.
Os cidadãos preocupados andariam pela rua de um modo um pouco diferente de nós. Arrastariam mais os pés pelo chão e sentar-se-iam sem cruzar as pernas. Aliás, ninguém nesta sociedade poderia cruzar as pernas, as mulheres não usariam saias, por exemplo. Cruzar as pernas seria demasiado arriscado...
Passeios no campo...? Bem, como seria de esperar, existiria uma complexa rede de estradas pedestres devidamente pavimentadas em todas as zonas rurais. Seria possível ir a pé desde Lisboa a Estocolmo sem correr o risco de deixar vergonhosas pegadas ou de mostrar a sola do sapato.
Um dos modos de distinguir a diferença entre sociedades mais e menos desenvolvidas, era por exemplo através do andar dos próprios habitantes. Um andar mais hirto era sinónimo de pessoa socialmente desenvolvida e culta, um andar mais arqueado das pernas só poderia significar uma mentalidade atrofiada. Outro método de distinguir o nível de desenvolvimento era através do estado de conservação dos pavimentos e estradas pedestres dos respectivos países ou cidades.
A própria palavra "sola" era proibida. E haviam mesmo casos de pessoas condenadas à prisão, por terem insultado outro cidadão com a horrorosa expressão "Filho de uma grande sola!"
A palavra "sapato" era mal tolerada. Mas não era punível por lei. No entanto era a palavra mais insultuosa a seguir à criminosa "sola".
Está claro que existira um grupo clandestino que resistiria a esta censura. De quando em vez, organizavam festas e/ou manifestações clandestinas em que os participantes eram obrigados a confraternizar fazendo o pino...
Curiosamente, para estes cidadãos zelosos, mostrar a sola desnuda dos pés era-lhes completamente indiferente...
No entanto, apesar deste comportamento, ninguém nesta sociedade sabia explicar o que estava por detrás desta auto-censura...
Uns diziam que devia ser por causa de uma tal de pisadela...Nunca ninguém conseguia ir mais longe que isto na discussão. Outros ainda, juravam a pés juntos que tudo isto tinha uma origem extraterrestre, o Adão tinha sido raptado por um o.v.n.i... bem, não fazia qualquer sentido.
Não existia consenso quanto à origem. Aliás, discutir estes assuntos era punível por lei. E apenas os filósofos e eruditos da sociedade conseguiam reunir-se regularmente em cafés subterrâneos para tentarem chegar a uma conclusão definitiva sobre o assunto. Ouvia-se dizer que estas discussões acabavam sempre ao pontapé... No entanto não se especificava se era com ou sem sapatos...
O futebol era jogado a arrastar os pés. Se um jogador rematasse com o pé levantado do chão, levava cartão vermelho e 1 mês de prisão.
(...)
Como disse, isto é apenas um esboço de uma ideia...
Alguém quer começar uma pequena novela a partir deste esboço?
