terça-feira, 27 de setembro de 2005

Rubrica: "Continue Você"- PARTE 1

Aquela sensação picante de uma perna dormente, demasiado tempo dobrada, a voltar à vida apoderou-se-me lentamente de todo corpo.

Reparei, com estranho espanto, que já era de dia, pois a merda da vizinha do 2º direito estava outra vez a tocar aquela música, mas desta vez, porém, soava diferente...

Conseguia ver algumas lâminas de luz aguçadas a tentarem infiltrar-se pelas apertadas frestas da persiana, pareciam mais numerosas do que nas outras manhãs. Estava ensonado, era normal. Sentia no entanto que não tinha dormido tudo o que deveria ter dormido. Mas a merda da vizinha tocava aquela música exactamente à mesma hora todas as manhãs, e eu não me tinha deitado mais tarde do que era habitual.

Lá fora, o deprimente chilrear dos pássaros misturado com o som ventoso dos carros-citro-poluentes, esse parecia o mesmo de sempre. Talvez tivessem mudado um pouco a gravação, por vezes isso acontecia, mas soava ao mesmo...

Esperei que o ânimo surgisse abruptamente para me permitir sair da cama, mas nem a lembrança de que o Benfica jogava hoje uma partida importante para a Taça dos Campeões Regionais surtiu algum efeito. Permaneci quieto. Pesado. Sentia que o meu corpo tinha cavado um sulco no colchão da cama, mas talvez fosse o resultado da sensação de dormência. Estaria outra vez com gripe? Ainda bem que tinha comprado mais comprimidos azuis. Gostava de me prevenir. Não, desta vez era algo diferente. Sentia-me como se tivesse estado morto, mas no entanto era manhã outra vez.

O efeito dormente a percorrer-me o corpo estranhamente pesado tardava em passar e a habitual tesão matinal de outros dias tinha-se agora transformado numa vontade indómita de mijar os lençóis soados e quentes. Aguentei. Mas não sem uma dor aguda no baixe ventre que se alastrou rapidamente a todo o corpo como uma enxurrada de picadas de abelhas. Berrei. Berrei tanto que a música parou. O pequeno alívio da dor transformou-se num estranho som que ecoou pelo quarto. Irreconhecível. Assustei-me. O sulco esculpido pelo meu próprio corpo enchia-se agora de um líquido quente. Sentia-me a boiar.

A minha voz! Esta não era a minha voz! Parecia-se com a minha voz, mas não era. No entanto, eu, sentia-me eu. Mas diferente. Aquela voz rouca e fraca fez-me despertar mais do que a própria dor que agora não passava de uma atordoante memória húmida. Mas isso já não importava. Tentei articular a medo algumas palavras... mas a voz era demasiado assustadora. Calei-me. Estava desperto. Paralisado. Não pertencia ali. Não me pertencia. Mas aquele quarto era o meu e eu sabia que eu era eu. Tinha a certeza. Absoluta.

Tentei olhar em redor, parecia tudo normal. A penumbra monocromática do quarto permitia-me ver o meu casaco e cachecol vermelho pendurados no cabide da porta e o retrato da minha mulher na parede em frente que eu contemplava todas as manhãs ao despertar. Era o mesmo retrato. Familiar. Senti um fugaz e doce alívio. Mas a arrepiante lembrança daquela voz rapidamente desvaneceu qualquer esperança de normalidade matinal.

Já tinha ouvido falar em casos, não completamente provados, de sujeitos que relatavam que tinham acordado com 82 anos da noite para o dia. Juravam que na noite anterior, antes de adormecerem, estavam na casa dos 30. Sempre achei estes casos algo exagerados, mas desde que o 3º Governo da 5ª Era anunciou que o acesso às máquinas de emigração intergalácticas tinha sido provisoriamente interdito a algumas das classes trabalhadoras mais baixas que eu desconfiava de tudo e não julgava nada do que ouvia como absolutamente absurdo. O benefício da dúvida era agora a minha religião.

Agora é que era. Agora ia mesmo levantar-me da merda da cama. Iria a correr à casa de banho e o espelho seria a prova de alívio que eu tanto ansiava...

Acordar um dia com 82 anos, e pensar que se levou uma vida inteira apenas a lutar contra a monotonia seria demasiado para mim. Não era de facto o momento oportuno para me acontecer uma coisa deste género.

Vou-me levantar caralho! É agora...


quarta-feira, 21 de setembro de 2005

Lixo Memória (Arquivo)

quarta-feira, 14 de setembro de 2005

RENHÉQUIIIIIIIIIII